Islã e a Psicologia da libertação: um pilar para a luta psicológica na Palestina

Dra. Samah Jabr, Coordenadora de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Palestina, para o Al Jazeera.

 

A Psicologia da Libertação é uma abordagem revolucionária da Psicologia que vai além da terapia tradicional para abordar as raízes sociais e políticas da opressão e da injustiça. É uma resposta direta ao sofrimento dos povos colonizados e oprimidos, buscando libertar a mente e a alma dos efeitos devastadores do colonialismo e da ocupação.

“A dimensão da libertação na religião islâmica constitui um pilar importante para o surgimento de uma Psicologia da libertação que se concentra em abordar as causas e os efeitos da injustiça na saúde mental. O Islã é uma religião que valoriza a dignidade humana e defende a liberdade humana em todos os níveis”.


Na Palestina, onde as pessoas vivem sob ocupação, a Psicologia da Lbertação se torna uma necessidade urgente para enfrentar a injustiça e seus efeitos psicológicos e sociais. Essa abordagem não se limita apenas às dimensões psicológicas individuais, mas está profundamente ligada à luta pela liberdade e pela justiça nas sociedades em que as pessoas vivem.

Na Palestina, os princípios islâmicos surgem como um pilar fundamental que promove esse tipo de libertação. O Islã, com seus ensinamentos que clamam por justiça, igualdade e rejeição da injustiça, converge com os objetivos da Psicologia da Libertação na construção de sociedades resistentes que buscam dignidade e libertação de todas as formas de tirania. A religião islâmica traz em si uma mensagem abrangente de libertação que se estende a muitos aspectos da vida humana, desde a libertação do espírito e da alma até a libertação da sociedade da injustiça e da tirania. Essa dimensão de libertação é essencial no Islã e contribui para a construção de indivíduos e sociedades com base nos valores de justiça e dignidade, e para suportar as dificuldades da resistência contra a injustiça.

Como psiquiatra, não consigo entender a resiliência, a firmeza e a tolerância da sociedade palestina diante de todos os desafios que nos cercam sem perceber o papel fundamental que o Islã desempenha na cultura da sociedade; glorificar os mártires e esperar encontrar seus entes queridos na vida após a morte ajuda as pessoas a suportar perdas e prejuízos, quando as ferramentas da Psiquiatria e todos os tratamentos não conseguem aliviar a dor dessas graves lesões psicológicas.


A dimensão da libertação na religião islâmica constitui um pilar importante para o surgimento de uma Psicologia da Libertação que se concentra no tratamento das causas e dos efeitos da injustiça na saúde mental; o Islã é uma religião que valoriza a dignidade humana e defende a liberdade humana em todos os níveis. Deus Todo-Poderoso diz no Alcorão Sagrado: {E Nós honramos os filhos de Adão} (Al-Isra: 70). Esse versículo reflete o fato de que a dignidade humana é a essência da mensagem do Islã, e não é permitido violá-la em nenhuma circunstância.

O Profeta Muhammad, que a paz e as bênçãos estejam com ele, confirmou esse princípio quando disse: “A melhor jihad é uma palavra de verdade na presença de um governante injusto” (narrado por Al-Tirmidhi). Esse hadith, ensinamento, reforça a ideia de que a jihad não é feito apenas com armas, mas também inclui o enfrentamento da tirania e da opressão com palavras.

O Islã veio para libertar o homem de todas as formas de escravidão, não apenas em nível físico, mas também em nível intelectual e psicológico. Libertar-se das restrições e pressões psicológicas é parte essencial da mensagem islâmica, já que o Alcorão Sagrado recomenda a libertação do medo e da dependência dos opressores e incentiva os crentes a confiarem em Allah e a confiarem em si mesmos. Allah Todo-Poderoso diz: {Então não os temais, mas temei a Mim, se sois fiéis} (Al Imran: 175). Esse versículo orienta os muçulmanos a se livrarem do medo psicológico que as forças de opressão podem provocar neles e enfatiza que o verdadeiro medo deve vir somente de Allah, o que abre a porta para libertar a alma da escravidão.

Os muçulmanos também consideram a resistência à injustiça um dever religioso e moral. Na Surah An-Nisa, Allah ordena que os crentes defendam a justiça e testemunhem a verdade mesmo nas circunstâncias mais difíceis: {Oh fiéis, sede persistentes na justiça, testemunhas de Allah, ainda que seja contra vós mesmos} (An-Nisa: 135); esse versículo atribui aos muçulmanos a grande responsabilidade de alcançar a justiça e se opor à injustiça. O Profeta Muhammad (que a paz esteja com ele) também confirmou esse princípio quando disse: “A melhor jihad é uma palavra de verdade na presença de um governante injusto” (narrado por At-Tirmidhi); esse hadith reforça a ideia de que a jihad não é feito apenas com armas, mas também inclui o enfrentamento da tirania e da opressão com palavras e a tomada de posição contra a injustiça, o que pode ser a pedra angular da psicologia da libertação.

“O Islã se revoltou contra a escravidão, fazendo da piedade e das boas ações o verdadeiro padrão de valor de uma pessoa, e não de acordo com sua linhagem ou classe social”

 

O Islã como uma revolução contra as estruturas sociais da era pré-islâmica

Quando o Profeta Muhammad, que a paz e as bênçãos estejam com ele, foi enviado, a Península Arábica vivia sob estruturas sociais rígidas e severas, caracterizadas por discriminação de classe, exploração econômica, perseguição étnica e violência tribal. Essas estruturas reforçavam o poder da elite e se baseavam na escravidão e na exploração dos mais fracos. O Islã veio para se revoltar contra essas estruturas sociais e estabelecer uma nova sociedade baseada na justiça e na igualdade.

As manifestações mais proeminentes da Revolução Islâmica foram a destruição das diferenças de classe e tribais, como o Profeta, que a paz e as bênçãos estejam com ele, declarou em seu Sermão de Despedida: “Ó povo, seu Senhor é um só, e seu pai é um só. Não há superioridade de um árabe sobre um não árabe, nem de um não árabe sobre um árabe, nem de um homem vermelho sobre um negro, nem de um negro sobre um vermelho, exceto pela piedade” (Narrado por Ahmad). Essa declaração revolucionária demoliu as estruturas de discriminação social da era pré-islâmica e lançou as bases de uma sociedade baseada na igualdade entre todas as pessoas.

O Islã também se revoltou contra a escravidão, tornando a compaixão e as boas ações a verdadeira medida do valor de uma pessoa, e não de acordo com sua linhagem ou classe social. O Alcorão Sagrado afirma: {Libertar um escravo} (Al-Balad: 13) como uma das ações que aproximam uma pessoa de Deus. Essa revolução social não foi apenas uma libertação material, mas também uma libertação psicológica e intelectual, libertando mentes e corações dos grilhões da discriminação e da injustiça.

“Al-Kawakibi era famoso por suas posições corajosas contra a tirania e a injustiça, especialmente no confronto com a tirania otomana que dominava o mundo árabe naquela época. Ele pediu reformas políticas, sociais e religiosas e acreditava que a tirania era a causa da deterioração da nação islâmica”.


Líderes contemporâneos do Islã liberal

Os valores libertadores do Islã foram incorporados na vida de muitos líderes que usaram o Islã como uma ferramenta para a libertação da injustiça e da opressão. Aqui estão alguns líderes de nossa história moderna que forneceram modelos diferentes, mas complementares, de como o Islã pode ser usado na luta pela liberdade e pela justiça.

 

Malcolm X:
Ele é um dos líderes e ativistas mais proeminentes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ele nasceu em 1925 e morreu em 1965 em Nova York. Malcolm X cresceu em um ambiente desafiador, pois sua família foi submetida a perseguição racial depois que seu pai foi morto em um incidente que se acreditava ter sido motivado por questões raciais, e sua mãe sofreu crises psicológicas. A vida de Malcolm se deteriorou, ele se envolveu com o crime e passou um tempo na prisão. Durante sua prisão, converteu-se ao islamismo, começou a reformular sua vida e seu pensamento e tornou-se um símbolo importante da luta pelos direitos dos negros. Ele era conhecido por suas posições ousadas e francas contra o racismo e a opressão. Malcolm X reivindicou o orgulho da identidade negra e a independência econômica e política dos negros nos Estados Unidos. Em seguida, adotou uma abordagem global e começou a pedir a cooperação entre as raças e direitos humanos mais amplos, até ser assassinado em 21 de fevereiro de 1965, enquanto fazia um discurso em Nova York. Não é preciso dizer que ele visitou o campo de Khan Yunis em 1964, escreveu um artigo antissionista e se reuniu com Ahmad Shukeiri, o primeiro presidente da Organização para a Libertação da Palestina. Apesar de sua morte prematura, o legado de Malcolm X continua vivo e ele é hoje considerado um dos símbolos da luta pela justiça e pela dignidade humana.

 

Antes dele, havia Abdul Rahman Al-Kawakibi:
O pensador e revolucionário sírio, um dos pioneiros do Renascimento Árabe. Al-Kawakibi nasceu em meados do século XIX na cidade síria de Aleppo e pertencia a uma família distinta e conhecida. Ele estudou ciências religiosas e idiomas, bem como ciências modernas, o que o ajudou a se tornar uma figura influente no pensamento árabe e islâmico.

Al-Kawakibi era famoso por suas posições ousadas contra a tirania e a injustiça, especialmente no confronto com a tirania otomana que dominava o mundo árabe naquela época. Ele pediu uma reforma política, social e religiosa e acreditava que a tirania era a causa da deterioração da nação islâmica; portanto, concentrou-se em criticar a autoridade absoluta e pediu a construção de uma sociedade livre e justa com base nos princípios da alShura e da democracia. Sua obra mais famosa é o livro A natureza da tirania e a queda da escravidão, considerado um dos textos mais importantes do pensamento político árabe, no qual ele analisa a natureza da tirania e seus efeitos negativos sobre a sociedade e apresenta visões sobre como enfrentá-la e livrar-se dela.

“Fred Isaac fundou o Movimento de Justiça Islâmica na África do Sul, que trabalhou para enfrentar o apartheid por meio de uma perspectiva islâmica, concentrando-se na resistência à injustiça e à tirania, e também apoiou os direitos das mulheres”

 

Ali Shariati é um pensador e reformador iraniano:
Ele é considerado uma das figuras mais influentes do pensamento islâmico moderno. Nasceu em 1933 e seu pai era um ativista religioso e intelectual, o que influenciou muito Shariati em seus primeiros anos. Shariati estudou sociologia na Universidade de Mashhad, no Irã, e depois concluiu seus estudos de pós-graduação na Universidade de Sorbonne, em Paris, onde conheceu as ideias de filósofos e pensadores ocidentais e foi influenciado por eles, o que o ajudou a desenvolver sua própria visão intelectual.

Shariati era conhecido por seu pensamento renovador, que exigia a reinterpretação do Islã de acordo com as questões sociais e políticas da sociedade contemporânea. Ele se concentrou em reviver o Islã como uma força libertadora contra a injustiça e a tirania, e viu o Islã como uma religião que promove a justiça social e a igualdade. Shariati escreveu muitos livros e palestras que influenciaram a geração jovem de iranianos e desempenhou um papel importante na formação da consciência revolucionária que contribuiu para a Revolução Iraniana em 1979. Suas obras mais famosas incluem: Retorno a si, Construindo o eu revolucionário e Religião contra religião.

Shariati ainda é considerado um símbolo da renovação intelectual islâmica e um defensor da libertação dos povos muçulmanos da tirania e da opressão. Em seu livro, História da civilização, ele escreveu: “Quando a Palestina for abolida, Jerusalém for ocupada e ouvirmos apenas algumas vozes de nossos estudiosos, todas as narrativas e slogans religiosos não passarão de uma coleção de palavras que não significam nada.”


Da África do Sul vem Farid Ishaq:
Ele é um acadêmico islâmico e ativista dos direitos humanos e é considerado um dos mais proeminentes pensadores islâmicos contemporâneos que trabalham na interseção entre religião, justiça social e direitos humanos. Nascido em 1956, ele viveu sua juventude durante a era do apartheid em seu país, o que influenciou muito seu pensamento e ativismo político.

Fred Ishaq fundou o “Movimento de Justiça Islâmica” na África do Sul, que trabalhou para enfrentar o apartheid por meio de uma perspectiva islâmica, concentrando-se na resistência à injustiça e à tirania. Ele também apoiava os direitos das mulheres e participava de discussões sobre reformas religiosas e intelectuais no mundo islâmico, o que o tornou uma voz de destaque nesse campo.

Além de seu ativismo político e social, Ishaq ocupou cargos acadêmicos em várias universidades do mundo, incluindo a Universidade de Harvard, e é conhecido por sua pesquisa que combina estudos islâmicos com questões de direitos humanos, igualdade de gênero e democracia. Por meio de seu trabalho e de seus discursos, Ishaq defendeu a implementação dos valores de justiça e dignidade humana na sociedade islâmica, enfatizando a necessidade de uma interação positiva entre o Islã e os princípios universais de direitos humanos; ele continua sendo um ativista dos direitos dos palestinos.

 

“No Islã, vemos que o chamado para se levantar contra a injustiça e confrontá-la está claramente presente em muitos versículos do Alcorão e hadiths proféticos; os textos a seguir enfatizam a rejeição da injustiça e exortam as pessoas a defenderem seus direitos e os direitos de pessoas mais fracas:

Muitos líderes islâmicos mostraram como o Islã pode ser uma força motriz para a libertação da opressão e da tirania, e que o Islã não é apenas uma religião, mas uma mensagem de libertação que clama por justiça, igualdade e solidariedade com os oprimidos.

Como podemos entender a resistência dos palestinos à ocupação, apesar do desequilíbrio de poder, e a motivação para serem pacientes diante de perdas e prejuízos?

No Islã, vemos que o chamado para se posicionar contra a injustiça e confrontá-la está claramente presente em muitos versículos do Alcorão e hadiths; os textos a seguir enfatizam a rejeição da injustiça e exortam as pessoas a defenderem seus direitos e os direitos dos mais necessitados.

Na Surah An-Nisa, versículo 75: {E qual é o problema com vocês que não lutam pela causa de Allah e pelos necessitados entre os homens, mulheres e crianças que dizem: “Nosso Senhor, tire-nos desta cidade cujo povo é opressor e designe para nós de Ti um protetor e designe para nós de Ti um ajudante.”} Na Surah Ash-Shura, versículo 39: {E aqueles que, quando são injustiçados, se defendem}. Esse versículo indica que os crentes são encarregados de se defender quando são submetidos à injustiça. A Surah Hud, versículo 113, adverte contra a inclinação ou a aliança com os opressores: {E não se inclinem para aqueles que cometem injustiça, para que o fogo não os toque}.

“Em uma época em que alguns estão acorrentados pelo medo e pela submissão, o Islã continua sendo uma fonte de motivação para que as almas se libertem e resistam, para que a verdade permaneça firme.”

 

Enfrentar o opressor é uma responsabilidade moral e espiritual, e essa posição exige coragem e confiança de que a verdade deve prevalecer sobre a mentira. Deus ordena a Moisés, um indivíduo relativamente simples, que enfrente o maior tirano de sua época. Isso significa que o verdadeiro poder está na fé, não na arrogância e no poder material, e que a reforma não vem por meio de conivência ou silêncio diante da injustiça, mas por meio de ações ousadas e diretas para mudar a realidade. O versículo traz em seu contexto a mensagem de que confrontar a tirania e a injustiça é parte integrante da mensagem das religiões e que a mudança começa com o desafio, independentemente dos riscos.

Concluindo, o Islã não é apenas um conjunto de rituais religiosos, mas sim um sistema psicológico que transforma a fé em ação e um movimento de libertação que mobiliza a vontade de confrontar a tirania. A história islâmica está repleta de modelos honrosos de líderes que enfrentaram os tiranos com a força da fé e a coragem da postura, e esses valores ainda estão vivos hoje na luta dos povos oprimidos.

Enquanto alguns estão acorrentados pelo medo e pela submissão, o Islã continua sendo uma fonte de motivação para que as almas se libertem e resistam, para que a verdade permaneça firme e a justiça seja o objetivo supremo que merece todos os sacrifícios da vida.

 


Traduzido por Rima Awada Zahra, para a Brasil Palestine Mental Health

Originalmente publicado em https://www.aljazeera.net/blogs/2024/9/19/%d8%a7%d9%84%d8%a5%d8%b3%d9%84%d8%a7%d9%85-%d9%88%d8%b9%d9%84%d9%85-%d8%a7%d9%84%d9%86%d9%81%d8%b3-%d8%a7%d9%84%d8%aa%d8%ad%d8%b1%d8%b1%d9%8a-%d8%af%d8%b9%d8%a7%d9%85%d8%a9