A APA está abandonando o compromisso com os Direitos Humanos ao recusar-se a falar abertamente sobre a Palestina

A Associação Americana de Psicologia reivindica ‘priorizar a defesa dos Direitos Humanos’, mas se sua direção quiser realmente honrar esse compromisso, deve reconhecer e
enfrentar o genocídio de palestinos em Gaza, hoje.

Roy Edelson, 23 de outubro de 2024, para a Mondoweiss.

A Associação Americana de Psicologia – APA, uma das maiores organizações de psicólogos clínicos, pesquisadores e acadêmicos do mundo – afirma que ‘prioriza a defesa de Direitos Humanos’ e ‘encoraja psicólogos a apoiar e defender populações sob risco de violações de Direitos Humanos, ‘incluindo populações local e globalmente marginalizadas’. Mas se os dirigentes da APA querem honrar esse compromisso, devem fazer muito mais para reconhecer publicamente e abordar a situação devastadora de palestinos em Gaza, atualmente.

Por dez longos meses depois dos ataques do Hamas em Israel, no outubro passado, a Diretoria e o Conselho de Administração da APA nitidamente evitaram o reconhecimento público do ataque genocida de Israel. Na verdade, apesar das mortes e ferimentos em massa, deslocamentos forçados e da fome em Gaza, a direção da APA chegou a desencorajar grupos internos da Associação a emitirem suas próprias declarações reivindicando um cessar-fogo humanitário urgente.

Finalmente, no último Agosto, diversos membros do pleno ampliado da APA – seu Conselho de Representantes – desafiou a resistência da Associação e apresentou uma resolução em apoio a um “imediato, permanente e compreensível cessar fogo no conflito Israel-Gaza”. Com diversas alterações no texto original, eles trabalharam incansavelmente para construir uma declaração ‘equilibrada’, que respondia as preocupações levantadas por vários comitês e grupos internos da APA. Entre seus compromissos, por exemplo, estava a pontuação de que a resolução ‘não se destinava a defender ou criticar nenhuma parte envolvida no conflito’. Sem surpresas, estiveram ausentes da declaração as palavras ‘ocupação’, ‘apartheid’, ‘limpeza étnica’ e ‘genocídio’. 

Felizmente, quase dois terços dos membros do Conselho votaram a favor da Resolução. Ainda assim é perturbador que cerca de um terço não votou. A oposição defendeu que a APA não deveria se engajar em nenhuma ‘questão política’, que a APA não deveria focar muita atenção nesse conflito particular e, mais notadamente, que a votação deveria ser adiada para dali a seis meses, para 'melhorar a redação da declaração. Depois que a declaração foi aprovada apesar dessas objeções, não demorou para que reclamações injustificadas – mas previsíveis – de antissemitismo surgissem de alguns setores.

Apesar do tom cauteloso, a resolução do cessar-fogo representa um passo importante, na direção certa. Mas, dado o compromisso explícito da APA em promover a saúde psicológica e os Direitos Humanos, as ‘demandas morais’ por mais ações são evidentes e consistentes. Uma única declaração não é suficiente, e os muitos relatos confiáveis ​​sobreo pesadelo que é a assistência médica em Gaza devem convencer qualquer psicólogo que tenha dúvidas. Considere o seguinte.

A maior organização de saúde mental em Gaza é o Programa de Saúde Mental Comunitária de Gaza. O relatório do GCMHP de julho passado (traduzido por Brasil Palestine Mental Health Network, nota nossa) descreve em detalhes como a "exposição prolongada e múltipla a eventos traumáticos" teve um impacto devastador no bem-estar psicológico dos palestinos, aumentando seus sentimentos de raiva, frustração e desespero, e intensificando os sintomas de ansiedade, especialmente entre crianças e mulheres. Neste momento de profunda necessidade dos serviços profissionais do GCMHP, o relatório também observa a terrível consequência do ataque contínuo de Israel:

Durante a guerra em andamento, o GCMHP perdeu duas de suas três instalações (centros comunitários da Cidade de Gaza e Khan Younis), enquanto a terceira em Deir El-Balah foi parcialmente danificada. O mais doloroso foi a perda de três colegas mulheres (psicólogas). Um homem, um coordenador de projeto, e sua esposa ficaram moderada a gravemente feridos. Eles perderam seus filhos e familiares. Uma assistente administrativa ficou moderadamente ferida, sua filha foi morta e seus familiares ficaram feridos.

 

Várias agências das Nações Unidas — onde a APA orgulhosamente figura como uma ONG credenciada — também ressaltaram as circunstâncias catastróficas de assistência médica que Gaza enfrenta como resultado do ataque de Israel por um ano. Em fevereiro, o representante da UNICEF na Palestina observou que quase todas as crianças em Gaza — mais de um milhão — precisavam de saúde mental e atenção psicossocial. As condições só pioraram nos meses seguintes. E no mês passado, o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU relatou que "apenas 17 dos 36 hospitais permanecem funcionais — todos parcialmente — e apenas 57 das 132 unidades de atenção primária em saúde estão funcionais, tudo em meio a uma escassez paralisante de combustível, medicamentos e suprimentos essenciais".

 

Ainda mais recentemente, no início deste mês, a Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre o Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental e Israel, emitiu um relatório que deveria ser leitura obrigatória para todos os líderes da APA — e para profissionais de saúde em geral. Aqui estão dois trechos:

A Comissão conclui que Israel implementou uma política consciente de destruição do sistema de saúde de Gaza. As forças de segurança israelenses deliberadamente mataram, feriram, prenderam, detiveram, maltrataram e torturaram profissionais de saúde e tornaram ambulâncias em alvos, constituindo os crimes de guerra de homicídio intencional e maus-tratos e o crime contra a humanidade de extermínio. As autoridades israelenses realizaram tais atos enquanto endureciam o cerco à Faixa de Gaza, resultando no impedimento de acesso de combustível, alimentos, água, medicamentos e suprimentos médicos aos hospitais, ao mesmo tempo em que reduziam drasticamente as autorizações para que os pacientes deixassem o território para tratamento médico. A Comissão conclui que essas ações foram tomadas como punição coletiva contra os palestinos em Gaza e são parte do ataque israelense em andamento contra o povo palestino, desde 7 de outubro.

 

Os maus-tratos de detentos palestinos por autoridades israelenses são o resultado de uma política intencional. Atos de violência física, psicológica, sexual e reprodutiva foram perpetrados para humilhar e degradar os palestinos. Isso foi observado em várias instalações e locais de detenção temporária, bem como durante interrogatórios e durante o trânsito de e para as instalações. Os detidos, incluindo idosos e crianças, foram submetidos a maus-tratos consistentes, incluindo falta de comida suficiente e instalações de higiene adequadas, espancamentos, linguagem abusiva e foram forçados a realizar atos humilhantes. As forças de segurança israelenses cometeram esses atos com a intenção de infligir dor e sofrimento, equivalendo à tortura como um crime de guerra e um crime contra a humanidade e constituindo uma violação da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. As mortes de detidos em decorrência do abuso ou negligência equivalem aos crimes de guerra de homicídio doloso ou assassinato e violações do direito à vida.

A recente carta aberta ao presidente Biden e à vice-presidente Harris, assinada por 99 profissionais de saúde americanos que se voluntariaram em Gaza em vários momentos ao longo do ano passado, oferece mais um relato assustador. Descrevendo-se como um "grupo multirreligioso e multiétnico", eles oferecem relatos em primeira mão que incluem — mas não estão limitados a — o seguinte: quase todos em Gaza estão doentes, feridos ou ambos; mães desnutridas não têm escolha a não ser alimentar seus recém-nascidos com fórmula feita de água venenosa; crianças pré-adolescentes são regularmente levadas para atendimento de emergência com tiros na cabeça ou no peito; natimortos e mortes maternas que normalmente seriam evitáveis ​​agora são comuns;e os profissionais de saúde palestinos estão entre as pessoas mais traumatizadas em Gaza — e quase 1.000 deles foram mortos por forças israelenses.

Como um ponto final que merece mais reflexão, é instrutivo comparar como a liderança da APA respondeu à invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022 e como eles responderam à destruição de Gaza por Israel. Poucos dias após a invasão russa, o Conselho da APA correu para endossar de forma esmagadora uma declaração expressando "solidariedade com a Associação Nacional de Psicologia da Ucrânia, o povo ucraniano e colegas na região do Leste Europeu, enquanto a nação ucraniana se defende".

Nas semanas que se seguiram, o escritório de relações públicas da APA publicou artigos on-line — por exemplo, "Conversando com crianças sobre a guerra na Ucrânia" e "Como lidar com o trauma da guerra de longe" — e produziu um podcast intitulado "Falando de Psicologia: sobrevivendo ao trauma da guerra na Ucrânia". E houve mais. A APA contribuiu com tempo e recursos para ajudar psicólogos ucranianos a lidar com "as necessidades impressionantes dos ucranianos em casa, em seu país e no exterior". E os membros da APA foram encorajados a fazer doações financeiras para apoiar "o atendimento psicológico ao povo ucraniano".

Todas essas foram iniciativas valiosas da APA em apoio à Ucrânia e seus cidadãos. Mas é difícil ignorar o perturbador contraste — o silêncio e a inação predominantes, a aparente invisibilidade da angústia palestina — quando se trata de Gaza.

Na verdade, até onde é sabido, no ano passado a APA falhou em oferecer qualquer apoio significativo ao povo da Palestina. Isso pode mudar hoje, e dois passos iniciais são óbvios. Primeiro, a liderança da APA pode pedir o fim do fornecimento de armas letais e cobertura política pelo governo dos EUA, essenciais para o ataque contínuo de Israel. Organizações internacionais proeminentes, o maior sindicato de profissionais de saúde do país e líderes políticos dos EUA já o fizeram. O povo americano também expressou apoio majoritário a um embargo de armas. Segundo, com fundos totalizando dezenas de milhões de dólares, a APA pode prontamente fornecer assistência financeira a grupos sem fins lucrativos que trabalham para aliviar o sofrimento inconcebível em Gaza (e também na Cisjordânia e no Líbano). Na minha opinião, qualquer coisa menos é uma traição trágica ao compromisso declarado da APA com o bem-estar humano e os direitos humanos.

Como um lembrete: esta não é a primeira vez que a APA aparentemente escolheu a conveniência em vez da ética. Mais memorável, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o governo dos EUA implementou políticas que levaram ao abuso — e tortura — de milhares de homens e meninos muçulmanos. Renomados grupos de Direitos Humanos rapidamente expressaram forte oposição. Mas destoando desses princípios, os representantes da APA promoveram a alegação absurda de que psicólogos ajudaram a manter essas operações de detenção e interrogatório "seguras, legais, éticas e eficazes". Demorou mais de uma década para que a liderança da APA enfrentasse essa falha trágica e prometesse uma redefinição da "bússola moral" da
organização. Onde está essa bússola hoje?

Roy Eidelson - Presidente da Sociedade para o Estudo da Paz, Conflito e Violência (Psicologia da Paz: Divisão 48 da APA) e membro da Coalizão por uma Psicologia Ética. Ex-diretor executivo do Centro Solomon Asch para Estudo de Conflitos Etnopolíticos da Universidade da Pensilvânia e ex-presidente da Psicólogos pela Responsabilidade Social. Seu livro mais recente é Doing Harm: How the World’s Largest Psychological Association Lost Its Way in the War on Terror (McGill-Queen’s University Press, 2023); ele também publicou dezenas de artigos em periódicos acadêmicos revisados ​​por pares e em vários meios de comunicação, incluindo o Washington Post e o Los Angeles Times.

Originalmente publicada em: https://mondoweiss.net/2024/10/the-american-psychological-association-is-abandoning-its-commitment-to-human-rights-by-refusing-to-speak-out-on-palestine/

Tradução: Cesar Fernandes, para Brasil Palestine Mental Health Network