Lobistas pró-Israel tentaram cancelar um evento sobre saúde mental e Palestina – mas não conseguiram

“A psicanálise em geral assume frequentemente uma posição anti-Palestina”.

Sophie K Rosa, para novaramedia.com

Lobistas pró-Israel tentaram impedir a realização de um evento com ingressos esgotados sobre a Palestina no Museu Freud de Londres no início de março de 2024; não conseguiram, porém, impedir que a discussão fosse levada adiante em um momento importante de solidariedade com a Palestina dentro de um campo que se encontra dividido.

O grupo Advogados do Reino Unido por Israel (UKLFI) escreveu ao Museu, sediado na antiga casa de Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, um dia antes do evento, que buscava chamar a atenção para o genocídio em Gaza perpetrado por Israel, em um campo no qual as vozes palestinas raramente são ouvidas.

“A psicanálise em geral frequentemente assume uma posição anti-Palestina”, disse o organizador Luke Manzarpour, do Coletivo de Trabalhadores Comunistas de Saúde Mental da Red Clinic. Nesse contexto, o evento teve um significado particular – talvez por isso tenha sido escolhido como alvo.

Em uma carta enviada ao diretor do museu, Guiseppe Albano, em 14 de março, e compartilhada com a Novara Media pela Red Clinic, a UKLFI – um grupo de lobby que se descreve como uma “associação voluntária de advogados que apoiam Israel” – pediu ao local que cancelasse o evento “para proteger [sua] reputação”.

A diretora do UKLFI, Caroline Turner, destacou a presença da palestrante Lara Sheehi, que estava no centro de uma questão que repercutiu no ano passado, trazendo à tona o relacionamento tenso da psicanálise com a Palestina, mesmo antes de 7 de outubro.

Sheehi era professora de Psicologia Clínica na Universidade George Washington quando, em janeiro de 2023, o grupo de lobby israelense StandWithUs agiu a partir das preocupações de alguns estudantes judeus sobre uma palestra que Sheehi ajudou a organizar. O grupo pró-Israel reclamou ao Departamento de Educação dos EUA que Sheehi havia discriminado estudantes judeus ao se recusar a acatar suas definições de antissemitismo.

Sheehi disse que sofreu uma “campanha global de difamação (…) por parte dos sionistas” como resultado do incidente. Desde 7 de outubro, ela disse, houve “um aumento acentuado” nos “assédios” – parte de uma agenda para “intimidar e reprimir dissidentes e prejudicar propositalmente os antissionistas”.

Em um comunicado à imprensa publicado no site da UKLFI antes do evento no Museu Freud, Turner ecoou essa “campanha”, chamando Sheehi de “uma palestrante extremista” com um “histórico antissemita e pró-terror”, abaixo de uma fotografia da autora, usada sem sua permissão.

Sheehi disse: “Qualquer um que espera que eu aceite as alegações falaciosas, islamofóbicas e fomentadora do ódio anti-árabe feitas por um grupo de justiceiros genocidas pró-Israel que são conhecidos por forçar a remoção de pinturas de crianças de Gaza de um hospital no Reino Unido (bem antes de 7 de outubro) já escolheu o lado errado da história” – referindo-se a ações passadas da UKLFI, que teve como alvo hospitais e galerias de arte.

Embora o Museu Freud tenha finalmente permitido que o evento da Red Clinic acontecesse, os organizadores inicialmente ficaram preocupados, a ponto de cogitar sediá-lo em outro lugar, em meio ao que Manzarpour disse se tratar de uma tentativa de “intimidar o museu com ameaças crescentes de última hora”.

Em uma discussão com o local, a Red Clinic foi solicitada a fornecer garantias por escrito de que o evento estaria em conformidade com a legislação antiterrorismo, compartilhar os nomes dos participantes e a se abster de gravar ou transmitir o evento — embora o museu tenha posteriormente recuado em algumas dessas exigências.

O Museu Freud solicitou que fosse declarado publicamente que o local não estava de forma alguma associado aos painelistas ou às suas opiniões.

“O Museu recebeu um número significativo de reclamações sobre o evento de clientes e visitantes”, dizia um e-mail aos organizadores da Red Clinic, acrescentando que alguém ameaçou denunciar o local à Comissão de Caridade do Reino Unido por sediar o evento. O Museu afirmou que “não tinha liberdade para dizer quem fez a ameaça”, mas enfatizou que ela foi “levada a sério”.

Quando finalmente ocorreu, na sexta-feira, 15 de março de 2024, o evento contou com quase 70 pessoas — a capacidade máxima do Museu — lotando o espaço do evento e — após uma negociação com o local — cerca de mais 100 participaram on-line.

Sheehi e seu parceiro Stephen, coautores de Psicanálise sob ocupação: Praticando a Resistência na Palestina, foram acompanhados na conversa por Nadera Shalhoub-Kevorkian, uma acadêmica feminista israelense-palestina. Como muitos na sala, todos os três usavam keffiyehs.

“O Museu Freud foi desafiado a ceder diante de um acionar fascista de exercício do poder”, disse Stephen Sheehi ao público, mas “não se curvou e fez a coisa certa”.

É significativo que o Museu Freud tenha resistido à pressão para cancelar o evento e concordado em sediar – como Sheehi disse ao público – “três árabes sendo convidados a dizer que não são terroristas”. A solidariedade com a Palestina tem sido – na melhor das hipóteses – marginalizada pelo campo psicanalítico.

Em 8 de outubro, a Associação Psicanalítica Internacional (IPA) divulgou uma declaração condenando o ataque do Hamas, mas ainda não condenou o genocídio de Israel em Gaza. Em um boletim informativo, o presidente da IPA se referiu aos palestinos assassinados como “palestinos não terroristas” – insinuando que o padrão é que os palestinos sejam terroristas.

Para muitos psicanalistas, a posição da IPA não foi inesperada; apesar dos profissionais alegarem neutralidade política, exemplos de racismo antipalestino na psicanálise datam de muito antes de outubro.

Em 2001, o Museu Sigmund Freud em Viena cancelou um evento do acadêmico e ativista palestino-americano Edward Said depois que surgiram fotos dele jogando “uma pequena pedra” em uma “área deserta” na fronteira do Líbano com Israel.

“Fui descrito como um terrorista atirador de pedras, um homem violento (...) no coro familiar de difamação e falsidade conhecido por qualquer um que tenha incorrido na hostilidade da propaganda sionista”, escreveu Said na época.

O Museu Freud de Londres interveio, oferecendo-se para receber Said, e o evento acabou acontecendo. Mas para a Red Clinic, o incidente revela uma tendência mais ampla.

A ideia de “neutralidade clínica” pode ser central para a psicanálise. Mas, embora isso possa se referir à tentativa do analista de permanecer imparcial — na medida do possível —, “geralmente é um disfarce por meio do qual os preconceitos se expressam”, disse Manzarpour.

Grupos como a Red Clinic procuram abordar essa dificuldade em reconhecer o poder dentro do campo, inclusive demonstrando apoio explícito à Palestina. Embora sejam minoria, a história e o presente da psicanálise estão repletos de praticantes como Manzarpour e Sheehi, que entendem que sua política radical é inseparável de seu trabalho clínico.

Para Sheehi, colocar a Palestina no centro é algo óbvio. “Se estivermos atentos às maneiras pelas quais os sistemas de opressão, seja o racismo, o capitalismo, o imperialismo ou o colonialismo de assentamento, são centrais para a criação e perpetuação do sofrimento psíquico, torna-se fácil estar atento às maneiras pelas quais a Palestina precisa estar no centro da nossa luta”, disse ela.

Sophie K Rosa é jornalista freelancer e autora de Radical Intimacy.

Tradução por Dafne Melo, psicanalista, tradutora e membro da Rede Brasil-Palestina de Saúde Mental